quarta-feira, 6 de julho de 2016

Me voilà! Aqui estou eu!





Me voilà! Aqui estou eu!

Por Vitalina de Assis.







Como já passei dos quarenta e parece-me que os cinquenta, possuem outros tons, então poeticamente, reformulo um conceito do qual nos apropriamos: a vida não começa aos quarenta, como dizem por aí. Nosso segundo turno começa a partir do momento em que compreendo a generosidade do viver, seja em que idade for. Entretanto, reconheço ser verdade que aos cinquenta, a leveza do existir exige que se recolha a âncora e que ao sabor de suaves ventos, nossa embarcação deseja bailar. Danças comigo?

E exatamente como o segundo turno da nossa jornada de trabalho, passa tão rapidamente que mal temos tempo para um lanchinho e, quando assustamos, já se encerrou o expediente, foi-se o dia.  Então deixamos a mesa meio bagunçada, porque tem dias em que não vale a pena ficar nem mais um segundo, entre papéis e pessoas que ficam mais tempo conosco, do que as queridas do nosso núcleo familiar. Atentar para o segundo turno de nossa existência é estar consciente de que a vida espera maior desenvoltura, respeito e a habilidade para se reinventar. 

Acabei de assistir o filme, "Dança comigo?" E devo confessar uma coisa, desta vez doeu! Sempre achei este filme maravilhoso. Richard Gere um homem perfeito, delícia para mulher nenhuma colocar defeito e seus passos para descobrir na dança que a Vida, por mais perfeita ou imperfeita que seja, não precisa estar engessada até que a morte nos separe amém, é inspirador.
Como? Foi a pergunta da esposa para o detetive: - Como uma pessoa que há vinte anos faz todos os dias as mesmas coisas, sente a necessidade de fazer algo diferente? E pensei naquele desconforto, uma insatisfação interior quase como se fosse um feto sendo gerado em nossas entranhas, que não compreendemos a que veio ou aonde quer nos levar. Como lidar com isto? 

[...] A alma tem d’estar sobressaltada pra o nosso barro se sentir viver.[...]
[...] E quem quiser a alma sossegada fuja do mundo e deixe-se morrer.[...]
                                  (Amar ou odiar – Fausto Guedes Teixeira)

É isto! O segundo turno de nossa  existência  requer mais cuidado, requer mudanças de hábitos arraigados, requer jogo de cintura, requer desconforto. Requer maior grau de paciência, mais doçura no olhar, mais compreensão na alma e decididamente, mais “des-propriedade”, aquele total descompromisso com a pose do outro, com as coisas do outro, seja ele parceiro ou filhos.  "Ninguém é de ninguém, na vida tudo passa", cantou o poeta.  Chegou o momento de alforriar coisas e pessoas, alforriar ideias e conceitos, alforriar roupas e sapatos, alforriar este molde de vida, no qual não se cabe mais, porque você cresceu! Crescer causa dor, desapegar é doído. Dói compreender que nu viemos ao mundo e que despidos, de tudo e de todos, sairemos dele. 

"Alma sossegada? Fuja do mundo e deixe-se morrer".  
 
Quando o que mais nos importa, é ausentar-se de todos e do mundo, recolher-se a dias e momentos que nos aprisionam em um espaço físico tão restrito no qual sequer, podemos alongar músculos e ideias e ali ficamos hibernando em pleno verão, é hora de acordarmos para a vida generosa que ainda nos tem, em caminhos desafiadores.

Quanto ao filme: por que se casam? Por que as pessoas não querem ficar sozinhas? Pergunta e revela a esposa, para o detetive: “porque precisamos de espectadores para a nossa vida, alguém que nos assista, compreenda, nos apoie, se importe e que esteja presente”. Aí doeu! Tenso! Naquele dia e momento específico, doeu. 

Hoje meu olhar otimizou, enxergo contornos que a debilidade da visão proporciona. Quanto mais se precisa de lentes para melhor enxergar, mais acurada fica nossa forma de ver e perceber o mundo. Os espectadores para a nossa vida, alguém que nos assista, compreenda, nos apoie, se importe e que esteja presente, não é, necessariamente, a condição de estar pareado a  alguém. Nem sempre trata-se de um outro. 

Nosso segundo turno  é o exato momento em que nos tornamos espectador, aquele que assiste, compreende, apoia, se importa e acima de tudo está presente com generosidade e carinho. O momento em que “eu” deixa de ser egoísmo e passa a ser prioridade. Me voilà! Aqui estou eu!

No "segundo turno" isto importa bem mais, mas estupidamente, percebemos bem menos.